E o mercado…?

E o mercado você pega e… Desculpa, me empolguei.

Essa pergunta já era feita há tempos mas, desde o começo de 2023, quando alguns jornais noticiaram que o “mercado não gostou” das falas e ações de alguns políticos, sempre que algo ruim e completamente não relacionado com finanças acontece, alguém prontamente pergunta “O que o Mercado achou disso, hein?”.

Para algumas pessoas, essa pergunta parece completamente válida e merece resposta. Para outras, nas palavras do físico Wolfgang Pauli, “it’s not even wrong” (”não está nem errado”, uma frase usada para indicar que algo está errado desde o seu principio) e é difícil de retrucar.

Neste texto, vou tentar desconstruir esse mito de uma vez por todas, explicar o que é o “mercado” e quando ele “reage”. Ao longo do texto farei algumas simplificações por questões didáticas, mas até o mais preciosista das finanças vai concordar que a conclusão não muda.

E o mercado?

Do jeito que as pessoas perguntam, parece que o mercado é uma entidade ou um sindicato de pessoas mesquinhas e chantagistas tentando controlar as ações do governo. Mas isso faz algum sentido? Vamos esclarecer quem ou o quê é o “mercado”.

Mercado, em economia, é um conceito que designa o conjunto de agentes, instituições, regras e sistemas, onde as pessoas participam de trocas voluntárias. Simplificando, são as trocas. Feiras de hortifrutis são mercados, trocas de figurinhas são um tipo de mercado, o mercado de trabalho, grupos de trocas em redes sociais e até mesmo doações de rins, apesar de não serem um tipo de mercado propriamente, quando estudados sob essa ótica, são capazes de salvar centenas, senão milhares de vidas.

Todos os mercados são interconectados em algum nível e o mercado que nos interessa aqui, o Mercado Financeiro, acaba agindo como um oceano, onde praticamente todos os mercados acabam desembocando. O que ocorre nos outros mercados, reverbera no mercado financeiro e vice-versa.

No mercado financeiro são negociados ativos. Ativos, de maneira bem genérica, são contratos que ligam obrigações e benefícios entre duas partes: uma ação é uma obrigação do retorno futuro de uma empresa para seus acionistas, um título de renda fixa é uma obrigação de um agente em repagar (com juros) o dinheiro emprestado, e por ai vai.

Alguns ativos são de especial interesse e por isso os participantes do mercado – basta abrir uma conta gratuita em qualquer corretora e com menos de R$50 já é possível investir e ser um participante do mercado – acompanham os seus preços mais de perto. São de interesse porque resumem muitas informações. O Ibovespa resume o tom geral das ações brasileiras, o S&P500 das americanas, o dólar (USDBRL) resume a expectativa sobre o Brasil em relação ao resto do mundo, e as taxas de juros, a capacidade do governo tomar dinheiro emprestado. Quando um jornalista fala que o “mercado gostou ou não gostou” de alguma coisa, normalmente está falando do panorama geral desses preços, se o Ibovespa subiu e o dólar e juros caíram, dizem que o mercado gostou e vice-versa.

Algumas pessoas vão argumentar que o mercado são os grandes players e “especuladores”, os “tubarões” que engolem as “sardinhas”, que manipulam os preços dos ativos para chantagear os governos a fazerem suas vontades. Manipulações pontuais acontecem em alguns ativos e são bem documentadas. Mas será que os grandes players do mercado são capazes de manipular todos os preços constantemente?

E os preços?

Antes de entender se é possível manipular os preços, vamos entender o que são os preços. Estimar o preço justo de um ativo é um misto de ciência e arte. São centenas de livros escritos sobre o assunto, incontáveis técnicas e planilhas de Excel tentando desvendar esse mistério. Apesar disso, o preço justo de um ativo é bem “simples”, é a soma dos fluxos de caixa futuros (dividendos, por exemplo) descontados à valor presente por uma taxa de juros apropriada (taxa de juros de um título do governo, mais um adicional pelo risco de se investir no ativo).

Por exemplo, estimamos que uma empresa vai pagar dividendos anuais no três próximos anos de $1, $2 e $3, e depois $1 indefinidamente. A taxa de juros total vai ser de 10% a.a. para sempre (vamos facilitar a conta). O nosso preço é de $14.81.

Cada um vai usar números diferentes, o preço justo acaba sendo algo individual de cada um que faz essa conta. O importante é, se você calcula um preço menor do que o preço que está no mercado, você compra (forçando o preço um pouco para cima), se calcula um preço maior, vende (forçando o preço um pouco para baixo). Essencialmente, o preço de mercado acaba sendo o preço ponderado das estimativas dos agentes. Claro, quem tem mais dinheiro afeta mais o preço, mas como veremos mais a frente, isso não importa tanto. Além disso, se você estiver certo, no longo prazo vai coletar todos esses fluxos de caixas e terá pago um preço barato pelos ativos, ganhando dinheiro. O mesmo se operar vendido e estiver certo.

Falando em média, isso me lembra um experimento estatístico muito famoso.

E o boi do Francis Galton?

Francis Galton foi um importante estatístico do século XIX, responsável por muitas das bases da estatística que conhecemos hoje. Certa vez [1], visitando uma feira, viu um concurso de adivinhar o peso de um boi, no qual quem chegasse mais próximo do peso real ganharia um prêmio. Algumas pessoas, sem conhecimento em pecuária, faziam chutes muito altos ou baixos; quem conhecia um pouco mais, chutava valores mais prováveis. Foram quase 800 palpites.

Mas algo chamou a atenção de Galton. Ele pegou a relação de todos os palpites* e calculou a média deles: 548kg. O verdadeiro peso do boi? 543kg. Menos de 1% de diferença!

Esse feito acabou ficando conhecido como “Sabedoria das multidões” e já foi repetido e demonstrado diversas vezes [2]. Você mesmo pode reproduzir alguma variação dele com um pote com balas e alguns amigos.

Matematicamente o que acontece: o palpite de qualquer pessoa pode ser quebrado no valor verdadeiro mais um erro, um valor aleatório:

Palpite = Verdade + Erro

O erro de algumas pessoas vai ser positivo, o de outras será negativo, uns maiores, outros menores… Por exemplo:

Quando calculamos a média:

Voilà! A média deles teve um erro menor do que os palpites individuais. Sem qualquer coordenação ou conhecimentos avançados, um grupo é capaz de ser melhor do que os resultados individuais. Esse resultado é demonstrado precisamente pelo Teorema Central do Limite.

Se os palpites fossem feitos apenas por criadores de gado, podemos esperar palpites mais precisos e um resultado final mais próximo da verdade. E, em ambos os casos, quanto mais palpites, melhor o resultado. Mais precisamente, o erro cai com a raiz quadrada do número de chutes.

Um adendo: vieses podem afetar essa questão. Se todos os palpites de alguma forma forem viesados, o viés pode persistir no resultado final. Por exemplo, as pessoas não leram que o boi seria pesado sem os chifres.

E os mercados eficientes?

O leitor atento já deve ter visto aonde eu quero chegar com isso. Se 800 pessoas leigas podem acertar precisamente o peso de um boi, o que dezenas de bancos, centenas de fundos e várias casas de research, com os melhores economistas, matemáticos, programadores, contadores e engenheiros, trabalhando todos os dias, tentando estimar (de uma forma ou de outra) aquela fórmula lá em cima podem fazer?

O “mercado” não é uma entidade ou um grupo de cabeças-brancas, ricos, reunidos numa sala decidindo os futuros da economia. O mercado é uma calculadora gigante, um agregador gigante, com informações extremamente complexas e precisas (o que não significa, é claro, que estão sempre certos). Uma consequência disso é que prever o mercado é extremamente difícil. Não basta ser melhor que a maioria das pessoas, é preciso ser melhor que a média delas.

Há uma vasta literatura [3][4][5][6][7] em finanças que demonstra isso, sendo este, provavelmente, um dos resultados mais importantes e robustos da área.

Quando olhamos no micro, seja para alguns ativos ou curtos espaços de tempo, alguns vieses podem dominar e alguma previsibilidade é possível, mas ela tende a desaparecer. O que faz os vieses desaparecerem é o mesmo que explica o porquê não faz muita diferença alguns players mexerem mais os preços do que outros, e o porquê um grupo de pessoas não é capaz de manipular os índices de mercado para chantagear o governo: arbitragem.

Lá atrás, nós calculamos o preço de um ativo como $14.81. Mas digamos que por algum motivo (seja por viés, porque um player muito grande movimentou o preço, ou porque um banco está tentando manipular o preço) o preço no mercado seja $10. Podemos então pegar $10 emprestados à 10% a.a. e usar o fluxo de caixa para pagar os juros da dívida (e potencialmente amortizá-la). Nosso ganho trazido a valor presente:

Então, vamos pegar emprestado todo o dinheiro que pudermos ou estivermos confortáveis, para comprar em ações. Nossa própria compra vai mover o preço para cima, digamos que para $11. Além de nós, outro fundo estimou o preço em $15 e vai comprar, outro estimou em $13, outro em $14… Como o preço do mercado está “errado”, a tendência é de que a maioria das estimativas sejam maiores do que a do mercado. Logo, vários players, mesmo que pequenos, buscando o lucro, vão levar o preço para o “preço verdadeiro”.

Para que algum grupo de investidores possa manipular os preços para chantagear o mercado, eles teriam que estar dispostos a perder muito dinheiro continuamente para, possivelmente, não conseguirem manipular por muito tempo.

E quando ele reage?

“Ah, mas se o mercado não reage a nada, porque ele ficou de mal quando falaram em ajudar os pobres?”

O mercado não ficou de mal por causa da ajuda aos mais pobres. Lá na primeira equação, o mercado só reage à duas coisas:

  • Mudanças nos fluxos de caixas esperados.
  • Mudanças na curva de juros.

Se uma ação caiu ou subiu, de alguma forma um desses dois, ou os dois, mudou (excluindo alguns efeitos microeconômicos de menor relevância aqui). Pense bem, diminuir a pobreza faz os preços dos ativos subirem. As pessoas, com mais dinheiro, se traduzem em maior consumo, que por sua vez é igual a fluxos de caixas maiores, logo, as ações deveriam ficar mais valiosas.

“Mas e quando falaram…”

Discurso e prática são coisas muito diferentes. A que custo vem essa suposta ajuda? Irresponsabilidade fiscal, aumento do déficit, redução da confiança das empresas e investidores estrangeiros? Essas coisas se traduzem diretamente no aumento da taxa de juros. E os preços são muito sensíveis aos juros. No nosso exemplo de $14.81, uma alta dos juros de 10% para 11% resulta numa queda de 6.8% no preço da ação.

Então, antes de perguntar qual foi a reação do mercado sobre um evento X, pergunte-se se esse evento afeta o fluxo de caixa ou a taxa de juros. Se a resposta for nenhum dos dois, então o mercado deveria reagir tanto quanto se o Flamengo mudasse sua escalação… Faria sentido?

Não é uma questão moral, é uma simples consequência.

Referências

*Há algumas variações nos detalhes da história, mas pouco importam.

[1] GALTON, Francis. Vox populi (the wisdom of crowds). Nature

[2] SUROWIECKI, James. The wisdom of crowds. Anchor, 2005.

[3] COOTNER, Paul H. Stock prices: Ramdom vs. systematic changes. Industrial Management Review. 1962

[4] FAMA, Eugene F. The behavior of stock-market prices. The journal of Business. 1965.

[5] FAMA, Eugene F. Efficient capital markets: A review of theory and empirical work. The journal of Finance.1970.

[6] SAMUELSON, Paul A. Rational Theory of Warrant Pricing. IMR; Industrial Management Review. 1965.

[7] DELCEY, Thomas. Samuelson vs Fama on the Efficient Market Hypothesis: The Point of View of Expertise.