Quebrando a banca

A menos que o investidor invista apenas em LFTs ou algo semelhante, todo investidor vai experimentar perdas. Os mais conservadores terão perdas menores, enquanto os mais arrojados terão perdas maiores e mais frequentes. Se, em vez de ser apenas um investidor passivo, a pessoa for um trader, entrando e saindo de posições ativamente, as perdas serão ainda mais frequentes. Claro, a expectativa é que, com o maior risco assumido, um maior retorno deve acompanhar.

Seja para um investidor conservador ou um high-frequency trader, o importante é ter uma política de risco (mais complexa quanto maior for o seu tamanho e sofisticação) e permanecer fiel a ela. Quando entramos no nível institucional, inclusive, existem leis, estatutos e órgãos de supervisão para garantir a aderência às políticas.

Claro, não vou negar que todo trader, por mais profissional e experiente que seja, não tenha pisado na linha uma vez ou outra. O calor do momento e a ganância fazem isso acontecer. O importante é aprender com o erro depois, mesmo que isso resulte em ganho. No entanto, alguns traders não apenas pisam na linha; eles vão tão longe que não conseguem nem mais enxergá-la. Hoje trago alguns dos casos mais emblemáticos de perdas no mercado financeiro.

Jérôme Kerviel: O homem mais pobre do mundo
Perdas: 4,9 bilhões de euros

O francês Jérôme Kerviel não começou como uma grande estrela em ascensão no mercado. Seu mestrado em finanças não era de uma universidade prestigiada na França. Entrou no tradicional Société Générale, no time de Middle Office¹, mais especificamente em compliance. Com 5 anos de casa, em 2005, ele conseguiu ser promovido para trader júnior na mesa de Delta One.

A mesa de Delta One é central em muitas tesourarias. Ela opera derivativos que não possuem opções ou outras complicações, como futuros, termos e swaps. Algumas mesas de Delta One também lidam com block trades (operações muito grandes) ou cestas de ativos, como a criação/destruição de ETFs. A ideia é vender um derivativo, como um swap, para o cliente e ir ao mercado fazer o hedge da posição de forma mais barata. Como as posições costumam ser de volume elevado, não é possível fazer o hedge de forma imediata sem impactar o mercado. Com isso, o trader pode operar um pouco mais antes de fechar a operação firme com o cliente ou operar menos depois, para não impactar tanto o mercado. Ele pode ter um “jogo de cintura” para ficar “descasado”, isto é, ficar direcional temporariamente.

Podemos dizer que Jérôme tinha bastante “jogo de cintura”. Sua função era operar a arbitragem entre os derivativos de ações (futuros, termos e swaps) e as próprias ações. Comprava um, vendia o outro e ganhava na diferença sem exposição direcional. Um tipo de operação de baixo risco, mas que exigia velocidade, conhecimento e estrutura, ideal para mesas de bancos. Esse tipo de operação não era exatamente emocionante, nem costumava gerar bônus milionários. Jérôme queria algo a mais.

Ele começou a operar de forma direcional, apostando na direção de certos ativos. Seu mandato, obviamente, não permitia esse tipo de operação, mas ele conhecia os sistemas. Ele trabalhara no compliance e sabia como disfarçar suas operações dos olhos de seus antigos colegas de back office, e o disfarce funcionou muito bem. Ele começou a fazer as operações fraudulentas no final de 2006 e levou até 19 de janeiro de 2008, quando foi descoberto. O tamanho de sua posição em derivativos na data chegava a quase 50 bilhões de Euros em nocional. A posição era tão grande que o banco francês levou 3 dias para conseguir desfazê-la, tomando um prejuízo de 4.9 bilhões de Euros.

Por suas operações ilegais, Kerviel foi condenado em outubro de 2010 a 5 anos de prisão, mas entre apelações e recursos acabou cumprindo apenas 5 meses de prisão. O mais curioso é que o tribunal o condenou a pagar o prejuízo, tornando-o tecnicamente a pessoa mais pobre do mundo com um patrimônio de -4.9 bilhões de Euros. Posteriormente, essa condenação foi anulada.

Há um grande ceticismo sobre a ideia de que Jérôme agiu sozinho. O ex-trader afirma que o que ele fazia era uma prática relativamente comum dentro do banco e que seus superiores estavam cientes, mas enquanto ele estava lucrando, faziam vista grossa. Ele se vê como um bode expiatório em uma questão maior de más práticas dentro do banco. Um dos assessores do presidente francês na época, Raymond Soubie, classificou como “surpreendente” uma única pessoa conseguir fazer tudo isso sozinho. Sentimento compartilhado por muitos especialistas do mercado.

Nick Leeson: P.S. I’m sorry
Perdas: 827 milhões de Libras

Se a vida de Kerviel fosse um filme, seria uma nova versão de um clássico, Nick Leeson. Suas histórias tinham muitas similaridades: Leeson também não tinha uma educação de primeira linha. Começou a carreira no mercado no back office do Morgan Stanley e foi subindo até chegar ao posto de floor trader no banco Barings. E até o Kerviel, Leeson era o recordista de maior prejuízo por trades não autorizados.

O Barings era um dos bancos mais tradicionais do Reino Unido. Fundado em 1762, ajudou os Estados Unidos na compra do estado da Louisiana e tinha a Rainha como cliente.

Em 1992, Leeson foi enviado para iniciar as operações do banco na bolsa de Singapura (SIMEX), comandando o time de floor traders. O floor trader era aquela figura lendária, que trabalhava no pregão viva-voz, gritando, fazendo gestos estranhos com a mão, comprando e vendendo. Alguns traders podiam operar por conta própria, mas a maioria, incluindo Nick, operavam para os seus clientes. Na SIMEX, operava, entre outras coisas, principalmente derivativos do índice Nikkei (Japão).

Quase todas as mesas no mercado têm uma conta de erro. Toda operação precisa ser associada a alguma conta, seja de cliente ou proprietária. Eventualmente, o trader pode confundir as pontas, digitar o nome do ativo errado, ou bater um zero a mais. Nesses casos, depois que se percebe o erro, a operação é associada à conta de erro. Em certa ocasião, um trader do time de Leeson vendeu 20 contratos de Nikkei, quando deveria ter comprado, então a operação foi para a conta de erro (a conta de Leeson foi numerada 88888, pela superstição do número 8 na Ásia). Porém, ao invés de reportar o erro para a matriz, desfazer a operação e assumir o prejuízo imediatamente, ele tentou desfazer a operação do seu jeito para tentar minimizar o prejuízo ou até sair no lucro. Ele não só conseguiu se sair bem dessa história, como percebeu que ninguém prestava atenção na conta de erro, ninguém…

Nick aproveitou essa conta para fazer trades proprietários, enquanto para a matriz, ele reportava que todos esses trades eram feitos para os clientes. As posições começaram a fazer tanto dinheiro que, em 1992, 10% do lucro global do banco veio de Singapura. Enquanto a música do dinheiro estava tocando, ninguém se importou de olhar se as operações da filial faziam sentido. Mas eventualmente a sorte virou. Em 1993, as perdas na conta passaram de 20 milhões de Libras. Tentando recuperar as perdas, ele aumentou a mão e os prejuízos passaram de 200 milhões de Libras, em 1994. Em 16 de janeiro de 1995, Leeson montou uma short straddle, uma estratégia de opções que ganha com mercados lateralizados, mas que pode ter perdas ilimitadas. Num golpe de azar inacreditável, no dia seguinte, o terremoto de Kobe atingiu o Japão e os mercados da Ásia desabaram. A posição incorreu em um enorme prejuízo, Nick fez uma série de operações para tentar recuperar, mas isso só piorou a situação. No dia 23 de fevereiro, ele fugiu do país, deixando um bilhete em sua mesa que dizia “I am sorry” (Me desculpem), mas foi interceptado quando seu voo fez uma conexão na Alemanha. No dia 26, o tradicional banco inglês declarou falência.

Howie Hubler: Quase certo é o mesmo que errado
Perdas: 8,7 bilhões de dólares

A crise de 2007-08 é bem conhecida. Começou no mercado imobiliário, altamente alavancado por derivativos exóticos, e se alastrou para o mercado de ações e a economia real. De bancos tradicionais indo à falência ao pequeno comerciante fechando as portas, a crise foi sentida em todos os EUA e no mundo. Mas algumas pessoas perceberam que algo estava errado no mercado imobiliário antes da crise estourar e conseguiram ganhar muito dinheiro. As histórias de alguns desses investidores são contadas no livro e filme “The Big Short,” de Michael Lewis. Howie Hubler quase foi um deles, quase…

A crise de 2007-08 foi uma sopa de letrinhas: CDO, CMO, MBS, ABS, CDS, FED, FNMA, GNMA… Duas dessas siglas são as mais importantes para entender a crise: CDO e CDS. Um banco concede vários empréstimos até seu dinheiro acabar, mas ele quer continuar emitindo mais. Então o banco empacota os vários empréstimos concedidos, fatia e vende para os investidores, gerando mais caixa para conceder novas operações. Se há alguma garantia envolvida, como um financiamento imobiliário ou de carro, esse investimento empacotado e fatiado é chamado de CDO (Collateralized Debt Obligation). Na prática, é como se o investidor emprestasse um pouco para cada cliente do banco. Pela diversificação e pela garantia concedida, esse tipo de investimento era tido como relativamente seguro, mas os engenheiros financeiros conseguiram torná-lo ainda mais “seguro”. Quando um dos clientes do banco deixava de pagar um empréstimo, ao invés de todos os investidores dividirem os prejuízos igualmente, o ativo era fatiado de forma a ter perfis de risco diferentes. A fatia (tranche) mais arriscada (chamada de equity) era a primeira a assumir o prejuízo, até a fatia AAA, que só assumiria algum prejuízo se uma quantidade absurda de devedores deixasse de pagar. Obviamente, quanto maior o risco, maior a fatia do bolo dos juros. Os CDOs AAA chegaram a ser considerados investimentos tão seguros quanto títulos públicos de muitos países.

Já os CDS são um tipo de derivativo que permite apostar no calote de um ativo de renda fixa, inclusive os CDOs. Ele funciona de forma parecida com um seguro, mas um seguro de outro ativo. Quem compra um CDS fica pagando um valor periodicamente, chamado de prêmio, e caso o título entre em default, recebe um montante de uma vez.

Hubler, trader da mesa de crédito do Morgan Stanley, percebeu que os CDOs mais arriscados eram ainda mais arriscados do que o mercado acreditava. Então ele comprou CDS para um nocional de $2 bilhões, esperando pelo eventual colapso nos CDOs arriscados. Essa foi a mesma estratégia seguida por outros personagens do The Big Short. O problema é que é uma estratégia que fica, no linguajar do mercado, “sangrando.” Você tem prejuízos por longos períodos até ganhar uma bolada de uma vez. Então Hubler teve a ideia de vender CDS, mas dos CDOs que ele considerava seguros, $16 bilhões de nocional. De um lado ele pagava o prêmio dos CDOs arriscados e do outro recebia dos CDOs “seguros”, ficando assim sem sangrar.

A estratégia começou a dar muito dinheiro. Howie levou para casa um bônus de $25 milhões no final de 2006. Mas o departamento de risco estava desconfiado da segurança da estratégia e começou a pressionar. O trader garantia que sua estratégia era segura, usando os próprios números do departamento de risco que diziam que mesmo no pior cenário histórico para o nível de default, a estratégia era lucrativa. Do outro lado, o risco argumentava que se as condições de mercado fossem piores que o recorde, o prejuízo poderia chegar perto dos $3 bilhões. Quem trazia dinheiro para o banco venceu a queda de braço.

Pouco tempo depois, a crise começou. Os CDOs arriscados começaram a cair como ele previa, mas os CDOs “seguros” também. Hubler argumentou que o mercado dos AAA estava irracional, logo corrigiria, mantendo a posição e aumentando cada vez mais os prejuízos. A posição só foi interrompida quando ele foi retirado do cargo e a direção do banco se encarregou de acabar com a sangria. No final das contas, a perda total da operação foi de $9 bilhões. A direção ainda agiu antes do pico da crise. Se Hubler tivesse segurado a posição por mais tempo, as perdas seriam ainda maiores.

No mercado, estar meio certo é o mesmo que estar errado. Ainda assim, a história toda compensou para o trader, que levou para casa $10 milhões antes de sair.

¹Middle Office é um termo genérico para algumas áreas do mercado financeiro que não são nem áreas que geram receita, nem são áreas chamadas de back office. Áreas como compliance, onboarding e risco são comumente classificadas como Middle.